domingo, janeiro 31, 2010

sábado, janeiro 30, 2010

Correndo com tesouras

“Exatamente pela mesma razão, às vezes é bom a gente se cortar e sangrar. Naqueles dias cinzentos em que as oito horas da manhã não parecem diferentes do meio-dia, e em que nada aconteceu nem vai acontecer, e em que você lava um copo na pia e ele quebra, acidentalmente, e perfura sua pele. E aí vem aquele vermelho chocante, a coisa mais luminosa do dia, tão vibrante que chega a zumbir, aquele sangue seu. Às vezes é legal, porque ao menos a gente sabe que está vivo.”

NINA

Jogo da Vida (Stephan Doitschinoff)

quinta-feira, janeiro 28, 2010

Com champignon

Esta é uma história de amor, embora algum leitor possa protestar que instintos menos nobres a dominem. Envolve uma mulher, um homem e um sentimento entre os dois. Se não quiserem chamá-lo de Amor, tanto faz. Uma rosa com outro nome teria o mesmo aroma etc, etc.

Encontraram-se em frente às sopas enlatadas. Ele examinava uma soupe a l'oignon, ela pegou distraidamente um creme de lagosta, bateu no braço dele e deixou cair a lata. Desculparam-se mutuamente; sorriram-se, e em pouco tempo estavam conversando. Sobre sopas, a princípio e – à medida que percorriam as prateleiras – sobre outros interesses comuns, sólidos e líquidos. Quando chegaram aos queijos, já tinham descoberto várias afinidades. A principal era um gosto pelo champignon que beirava a paixão. Os olhos dos dois brilharam quando descobriram isto. O ar se carregou de eletricidade quando seus olhos iluminados se encontraram e a conversa era sobre champignon. Se era Amor ou outra coisa, que importa?

Devo esclarecer que nem ele nem ela eram jovens. Estavam naquela idade crepuscular onde o espírito está disposto mas a carne já vacila, e o senso do ridículo intercepta o desejo para frustrar qualquer paixão além da mesa. Mas ainda havia, nos dois – como uma débil chama sob a caçarola, só o bastante para manter morno o molho, mas longe da ebulição – um saudável apetite pela vida. Ou, pelo menos, a morna memória de um apetite.

– Conheço uma receita de champignon... – disse ela, baixando os olhos como uma provocação.

Ele chegou perto para superar.

– Como são?

– Recheados.

­– Mmmm.

– Só me faltam trufas para completar a receita comme Il faut. Nunca encontro trufas...

– Meus champignons recheados finalmente com trufas! É um sonho que tenho desde que...

– Desde que?

– Desde que meu marido morreu.

Ele engoliu em seco. Estavam agora na seção de bebidas.

– Seu marido tinha trufas?

– Não. Não é isso... – Ela parecia alvoroçada. Pegou uma garrafa de Grand Marnier para disfarçar seu embaraço. É que comecei a cozinhar depois que meu marido faleceu. Para encher o tempo. O meu grande prato é o champignon recheado. Mas nunca fiz com trufas.

– Há quantos anos você...

– Sim?

– Está sem trufas?

Ela estava rubra como um rabanete por fora.

– Doze anos.

– Curioso. Nos cinco anos desde que minha esposa faleceu, recebo trufas regularmente, de um sobrinho que mora na França. Mas, fora um ou outro molho, que a minha cozinheira invariavelmente estraga, não sei o que fazer com as minhas trufas...

Alguma coisa pairou sobre o silêncio que se fez entre os dois naquele instante. Alguma coisa ainda disforme, a sugestão da sombra da possibilidade de uma idéia. Não podiam ter certeza que daria certo. Às vezes esta tudo conforme a receita – champignon dos grandes, o recheio de queijo, a manteiga e o creme para o molho, as trufas acrescentadas ao molho antes de gratinar – e não da certo. Mas como saber, sem provar?

Esta história tem dois finais, à escolha do leitor. Doce ou amargo, como as sutis variações da cozinha oriental. Num final ele pergunta para ela “Você quer?” E ela faz que sim com a cabeça. Então ele pergunta: “Na minha casa ou na sua?” E ela responde: “Na minha, porque eu conheço a cozinha...” No outro final, os dois se despedem, nunca mais se vêem, e o espectro de uma possível sauce com trufas perfeitas para os champignons recheados fica vagando entre as prateleiras, por todos os tempos.

Luis Fernando Verissimo